sábado, 25 de maio de 2013



Escola da droga


Pesquisa feita pela Unesco com 14 capitais mostra que iniciação a entorpecentes começa no colégio

Era para ser um dia como outro qualquer. O carioca A.E. acordou cedo e iniciou sua rotina matinal. Vestiu-se para ir à escola, tomou café e despediu-se da avó, com quem morava na zona sul do Rio de Janeiro. Ao sair, checou se o cigarro de maconha que costumava esconder na mochila estava lá. Antes de ir para a sala de aula de um dos colégios religiosos mais tradicionais da cidade, foi ao banheiro. Ali, deixou o baseado cair. Foi denunciado e expulso. O episódio ocorreu há três anos, quando A.E. tinha 12 anos. Hoje, ele faz parte de uma dupla estatística, ambas alarmantes. É um dos 92 mil jovens que fazem uso regular de drogas e um dos cerca de um milhão de estudantes brasileiros que admitem a existência de entorpecentes nas escolas. Os números estão no recente levantamento da Unesco, que mostra em detalhes estarrecedores essa triste realidade apresentada na pesquisa Drogas nas Escolas.

Foram recolhidas informações de 50.049 alunos da 5ª à 8ª série e do ensino médio de 14 capitais. Num total de 9.270 colégios públicos e privados, a pesquisa usou uma técnica conhecida como probabilística,
o que permitiu aos pesquisadores projetar o universo originalmente pesquisado para 3,7 milhões de alunos. Foram ouvidos ainda 3.099 professores e 10.225 pais de alunos. Com mais de 700 horas de entrevistas, o estudo gerou um calhamaço de 500 páginas e é o primeiro trabalho dessa natureza feito pela Unesco na América Latina. “Ilusão pensar que é o traficante quem oferece drogas nas escolas. São os próprios amigos do colégio que fazem esse papel”, analisa uma das coordenadoras da pesquisa, a socióloga carioca Mary Castro.

Foi exatamente isso o que aconteceu com A.E. Um colega da escola
de seu primo foi quem apertou o primeiro baseado para ele fumar. Do primeiro cigarro de maconha, aos 11 anos, o jovem evoluiu para o skank – uma espécie de maconha turbinada –, lança-perfume e cocaína. Esctasy, uma droga sintética que caiu no gosto de uma parcela considerável da juventude endinheirada, ele dispensa. Álcool e cigarros não o seduzem. Ao galgar a posição de usuário regular, A.E. começou a ficar sem dinheiro. Com a mesada curta, passou a roubar celulares na escola.
Não é incomum que o uso de drogas gere distúrbios de comportamento como o de A.E.: 92% dos alunos pesquisados afirmaram já ter cometido algum tipo de transgressão.

É no entorno dos colégios, mais do que dentro deles, que se constata a presença do tráfico e do consumo de drogas. “Não é o aluno quem vai atrás das drogas, é a droga que vai ao encontro dele”, analisa o psiquiatra paulista José Antônio Ribeiro da Silva. A Unesco confirma essa tese ao apontar os bares como os lugares onde, com maior frequência, são vendidas as drogas aos menores. Dentro das escolas, o banheiro é o lugar preferido para usar entorpecentes no horário de aulas. A maconha é disparadamente a droga ilícita mais consumida pelos estudantes. Tirando uma média das 14 capitais pesquisadas, concluiu-se que cerca de 92 mil alunos, de ambos os sexos, fumam maconha. Muitos dos usuários de hoje tiveram seu primeiro contato com os entorpecentes na sala de aula. A paulista A.P.O. fumou pela primeira vez aos 12 anos; um ano depois, usou cocaína e aos 14 anos já estava dependente. “Parei de estudar, já que era na escola que sempre voltava a usar drogas”, lembra ela, hoje com 24 anos.


Porto Alegre lidera o ranking do consumo de drogas. Enquanto o consumo médio nacional de maconha é de 2%, na capital gaúcha é de 4,7%. Esses jovens são também os maiores consumidores de cocaína e inalantes. Só perdem para Brasília quando o assunto é merla (uma espécie de pasta de cocaína misturada a querosene e gasolina). Em relação às drogas injetáveis, os estudantes gaúchos seguem a média nacional. “Demorei a aceitar essa realidade”, admite o psicanalista gaúcho José Outeiral. Autor de uma dezena de livros sobre o tema, o médico tenta explicar o fenômeno no sul do País. Seria o alto poder aquisitivo local e a proximidade das fronteiras. “Costumo dizer que a droga se matriculou na escola.”

Não importa a classe ou o sexo. A droga vem se aproximando mesmo da infância. Num passado recente, o jovem debutava no mundo das drogas aos 14 anos; hoje, aos 11 anos. Isso não significa que todos esses jovens evoluam para a dependência, assim como nem todo adolescente que usa drogas está envolvido com o tráfico. “Os mais vulneráveis são aqueles oriundos de famílias cujos limites não são claros”, analisa o psicanalista carioca Luiz Alberto Pinheiro de Freitas. A ausência do “não” na vida desses jovens cria uma espécie de ideal maníaco pela felicidade eterna e ininterrupta. A Unesco confirma esse diagnóstico: 63,7% dos alunos ouvidos pela pesquisa responderam que usam drogas para anestesiar as dificuldades.

“Acho ridículo minha mãe me chamar de maconheira. Meu pai é alcóolatra. Se ele pode, por que eu não posso?”, questiona a jovem T.H., 15 anos. “Fumo baseado desde os 12 anos. Já cheirei lança-perfume, mas não sou dependente.” Segundo a pesquisa da Unesco, o consumo de drogas entre as meninas é 30% inferior ao dos meninos estudantes. A exceção fica por conta de Belém – lá o consumo de drogas entre meninos e meninas é igual. Além de problemas familiares, o modismo e a necessidade de auto-afirmação são apontados pelos jovens como motivações importantes para iniciarem-se nas drogas.

No caso de T.H., o uso regular das drogas já está interferindo na vida escolar. Aluna de uma escola pública do Rio, ela sempre tirou boas notas. Mas, desde que passou a fumar diariamente, seu rendimento escolar despencou. Ela não associa as notas baixas ao uso regular de drogas.
“É uma fase da minha vida. Era boa aluna, hoje não sou mais.” Segundo
a pesquisa, o porcentual de reprovação entre os usuários de drogas
é duas vezes maior do que entre os alunos que não fazem uso dela: 31,3% contra 16,2%.

“As drogas, sobretudo a maconha, provocam prejuízo cognitivo. Elas atuam no lobo frontal”, comenta o médico Jorge Jaber, dono de uma clínica de recuperação de dependentes químicos. Cerca de 30% dos
seus pacientes são meninos e meninas menores de 18 anos. Por terem ainda o sistema nervoso imaturo, as drogas nessa faixa etária podem causar danos irreparáveis. Só que, ao contrário do que se pensa, não
é a maconha a porta de entrada para o mundo das drogas ilícitas, mas
o álcool e o cigarro. L.S., por exemplo, é a personificação dos números
da Unesco. Ele iniciou nas drogas pelo álcool. Hoje, aos 18 anos, ele
já repetiu de ano algumas vezes e cursa a 8ª série. As agressões passaram a fazer parte de sua vida quando começou a fumar maconha diariamente. Já agrediu a mãe e costuma roubar: “Meus alvos preferidos são velhinhas indefesas.”

As escolas públicas, sobretudo as localizadas em áreas de risco, são as que sofrem a maior pressão do poder coercitivo dos traficantes. “Até a Igreja e os postos de saúde estão sendo obrigados a abandonar esses locais”, comenta a diretora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Atenção ao Uso de Drogas (Nepad), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Maria Thereza de Aquino. Em muitas dessas escolas impera mesmo é a lei do silêncio, que vem acompanhada do medo e da ameaça, o que demonstra as tênues fronteiras entre a droga e a violência nas escolas. “O assunto drogas dentro da sala de aula é praticamente um tema proibido. Temos que falar sobre ele com muito cuidado”, admite uma professora de um Ciep da zona norte do Rio, localizado numa área conflagrada e dominada pelo tráfico.

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