quarta-feira, 6 de março de 2013

Recuperação e seus obstáculos


Alguns apontamentos sobre recuperação


Recuperar remete para passado, recuperar faz lembrar algo que se perdeu e que se tenta voltar a ter.
Não podemos voltar atrás no tempo, mas o que fazemos com o nosso passado, fazêmo-lo no presente, já que o futuro... é sempre no futuro. Resta-nos o presente para recuperar.
Será que se consegue recuperar sozinho?
Será que se consegue recuperar do que nem sequer se compreende?
Será que se consegue recuperar de umas coisas mantendo todas as outras?
Será que se consegue recuperar mas "só um bocadinho"?
Estas perguntas lembram-me as ilusões que se escondem por detrás de tanta recaída e de tanta pseudo-recuperação, na qual as pessoas apenas se enterram cada vez mais na mesma história de dor e de aniquilação.
Recuperar não significa apenas parar com o comportamento compulsivo. Esse comportamento compulsivo não apareceu do ar, não veio com uns cromos, nem foi uma intoxicação alimentar. Esses comportamentos têm causas profundas com imensas ramificações na complexidade da vida de cada um e com ramificações em aspectos da identidade de cada um, ou pelo menos naquilo a que cada um se habituou a viver e a acreditar.
Podem passar-se anos sem consumos ou sem os comportamentos da adicção de eleição e ao primeiro desabar, ao primeiro desgosto, à primeira felicidade, um momento de falta de consciência do que uma adicção é... é preciso tão pouco para recaír e tanto para recuperar.
Para uma recuperação poder chamar-se recuperação, é preciso alguém que compreenda, é preciso compreender, é preciso mudar tudo, mudar rotinas, mudar de companhias, mudar o cenário, os pequenos rituais, os pequenos gestos com associações que se prendem até aos mais ínfimos detalhes.
Para uma recuperação se chamar recuperação é preciso ir lá bem ao fundo, lá bem atrás e não é viável ser-se objectivo sozinho, e muito menos se for mal acompanhado.
Mal acompanhado por todos os que pertenceram à dinâmica de adição, desde os que eram iguais aos que "queriam ajudar".
Em recuperação outros precisam de surgir, com nova informação, com um novo respeito, uma identificação sincera e profunda, uma proposta séria e uma disponibilidade esclarecida para que a recuperação tenha rede no trapézio e se possa chamar recuperação.
É por isso que pedir ajuda é o primeiro passo. Reconhecer que temos um grande problema, que somos impotentes perante esse problema e que a bola de neve que rola descontrolada dando cabo de todo o nosso mundo; leva-nos a pedir ajuda e ao segundo passo que nos diz que algo nos vai ajudar, algo mais forte irá fazer toda a diferença.
Quando às famílias, precisam de recuperar também, e será melhor que não esperem que seja o adicto a fazer todo o trabalho. Por mais absurdo que pareça, por mais certeza que tenham da vossa sanidade e do vosso equilíbrio e lucidez; por favor façam a vossa dinâmica familiar passar pelo teste de uma terapia de família. Frequentem reuniões de co-dependentes anónimos, informem-se...
Não se aprende a mudar mantendo tudo sempre igual.
A adicção é uma doença de família.
Sempre.


Obstáculos à recuperação


O primeiro obstáculo é, estranhamente, o facto de tantos adictos não admitirem que têm um problema, logo não procurarem recuperação.
Tomar consciência de que existe um problema pode ser mais complexo do que parece na medida em que existe sempre quem o encoraje a continuar, seja o "marketing" relacionado com as drogas ilegais ou mais socialmente rejeitadas, seja a nossa cultura de obstinação no caso das dependências socialmente encorajadas como o trabalho, as dietas, a internet, o computador e a televisão...
Aceitar que existe uma compulsão, uma incapacidade de parar e um rasto de danos atrás dos nossos passos, acontece apenas quando algo de muito grave vem finalmente chapar-nos na cara.
Um AVC ou um esgotamento para o trabalhador compulsivo, um diagnóstico de anoréxia nervosa para quem é dependente das dietas, um esgotamento para quem é adicto às limpezas e arrumação...
Um enfarte para o comedor compulsivo.
Uma overdose...
Um acidente de automóvel para quem conduzia embriegado...
Uma perna partida no adicto aos resultados no desporto...
Algo que pára o tempo e confronta o adicto com a sua própria consciência, pode ser necessário para que este assuma que existe um problema. E até lá pode passar imenso tempo.
Uma auto-análise sincera mais antecipada podería poupar muito sofrimento e antecipar assim a recuperação.
Uma adicção é um hábito ou aspecto que toma conta de todas as outras áreas de vida. É uma doença, que se manifesta através de um ou mais comportamentos compulsivos sejam eles comportamentos socialmente encorajados ou associados a um estigma de vergonha.
Na dúvida vale a pena perguntar em contexto de terapia a quem tem ferramentas de um diagnóstico sério, sendo importante não omitir factos, nem retorcer a verdade.


Obstáculos à recuperação 2


Outro importante obstáculo à recuperação é o facto de não ser do conhecimento geral o significado da palavra "recuperação" em contexto de recuperação nas dependências.
Muitas pessoas confundem recuperação com abstinência. Muitas pessoas confudem recuperação com substituição. Existem também aqueles que definem a recuperação pela aparente "vida normal" (trabalhar, estudar, casar...).
Este desconhecimento é comum tanto entre dependentes como aqueles que o rodeiam com um dano enorme, na medida em que a cada recaída destas "pseudo-recuperações" aumenta a vergonha e a culpa do dependente.
É triste pensar que culturalmente dividimos as doenças em: "coitadinho", "fruta da época", "mau carácter" e "fraco".
Temos assim na categoria "coitadinho" todos os que padecem de doenças graves que se apanham de forma arbitrária sem conecção com nenhum estigma sexual, ou de comportamentos ditos de risco na categoria "fruta da época" temos quase todas as doenças das vias respiratórias no Inverno, alergias na Primavera, gastroentrites no Verão e de novo constipações no Outono.
Na categoria "mau carácter" temos o consumo de droga e alcool e todas as doenças que se contraem por comportamentos de risco.
Finalmente, na categoria "fraco" temos as depressões, esgotamentos e outras do fórum psicológico.
Isto é lamentável, porque doenças, são doenças. Precisam de um diagnóstico, tiveram uma causa que precisa de ser analisada e desenvolvem-se com sofrimento para o paciente, só com tratamento adequado em conjunto com as forças espantosas de regeneração natural do corpo e do espírito, podem ser controladas.
Isto é verdade para todas as doenças.
Assim, a ignorância é sempre um entrave à recuperação. Vive de estigmas, de preconceitos, de diferenciações arbitrárias e de uma subjectividade absurda e contra-producente.
Todas as dependências são uma doença, dolorosa e que leva à morte se não for devidamente acompanhada por quem sabe e tratada em regime de recuperação efectiva.
Uma recuperação efectiva pressupõe uma auto-análise sustentada de todo um percurso, de uma ferida dentro, de um passado, de causas emocionais e físicas, de uma profunda alteração de vida, de hábitos, de companhias, uma profunda transformação na auto-imagem, na forma como o indivíduo se vê e interpreta a sua realidade. Uma recuperação pressupõe novos critérios, e uma abordagem de si mesmo e do mundo, radicalmente diferente.
Se não houver um profundo trabalho interior, com um input significativo de novas percepções e emoções, bem como o controlo amoroso e respeitador de todo o condicionamento, em particular do interior, o chamado "buraco negro"... nada é recuperação. É tudo cosmética, condenada a borrar no próximo dia de chuva.


Obstáculos à recuperação 3


A fraca prevenção à recaída.
Recaída é um termo paradoxal em dependências, na medida em que a recuperação volta à estaca zero quando se recai. Ou seja, é como se não tivesse havido uma recaída e sim apenas uma continuação, mais do mesmo, um confronto com o "afinal ainda está tudo na mesma".
Prevenção á recaída só é possível quando se compreende a dependência em si. O impacto psicológico e principalmente físico das dependências.
A maior parte das pessoas encara a recaída como uma prova de fraqueza de carácter e isto também se passa com a maior parte dos dependentes activos. De tanto "recaírem" acabam por decidir que não há saída e decidem que nunca irão entrar em recuperação, para sofrer horrores e voltar tudo ao mesmo daí a algum tempo.
Culpa e vergonha são mais do que um sentimento sobranceiro, são como uma avalanche de tal forma avassaladora que é preciso recorrer rápido ao objecto de eleição na dependência para afogar rápido toda essa dor.
Além disso existe a componente física de cada dependência. Essa dependência física prega a maior partida ao dependente, porque troca todos os sinais, sobrevivência confunde-se com dependência e a luta que se trava conscientemente nem se compara à luta química que se vive no corpo e que a dependência ganha por maioria de razão química, entenda-se. A química não tem moral. E é por isso que recaír não é ser fraco, é ser feito de carne e osso. O resto é apenas ignorância. O tal obstáculo à recuperação.


Obstáculos à recuperação 4

"Estou curado!"
Sim, uma desintoxicação e estou curado. Umas férias e estou curado. Uma semana sem doces e estou curado.
3 dias de desintoxicação, 3 meses... é indiferente. Dependências são uma doença de vida. Como podería uma doença com a amplidão de uma vida curar-se com uma semana, ou meio ano que seja...
Quanto tempo leva a modificar toda a minha vida...? 3 dias? meio ano?
Claro que leva tempo. Não há "estou curado":
Com muita dedicação e amor próprio há:
- Estou em recuperação. Todos os dias, todos os dias da minha vida. Estou a criar uma nova vida por dentro, para conseguir uma nova vida por fora.
A família, os amigos, irão ficar ansiosamente à espera da grande notícia: Fulano está curado!
Na revista cor de rosa também aparecem os artistas "curados" das suas dependências...
É de uma ingenuidade confrangedora. Não se curam dependências. Transformam-se vidas. E transformar uma vida é como nascer de novo e ter de aprender tudo outra vez.
O obstáculo nº 4 passa então, também pela ignorância.
E vai no 4º aspecto da ignorância enquanto obstáculo à recuperação.
Talvez neste ponto se tenha já tornado suficientemente óbvio que ignorância não compensa.

Obstáculos à recuperação 5

Haverá vida depois da recuperação?
Se imaginarmos uma vida totalmente em torno de um centro, em que tudo gira em torno desse centro até a nossa identidade se confundir com essa bola de neve de complexidade, estaremos a descrever a vida de alguém que deixou de ter sequer a noção de que existe alguma coisa fora daquilo que vive.
Qual podería ser o objectivo de enfrentar a maior luta de uma vida, com profundo sofrimento, a ter de pôr em causa tudo e todos, a ter de ir ao quarto mais escuro, do medo mais esmagador, a ter de arrancar do peito a dor mais antiga e ninguém poder dizer se vamos ter sucesso, se vai ser rápido, e se; ainda por cima, não temos a certeza de que a vida depois da recuperação nos interessa???
Será mesmo que a dita "vida comum" interessa a um adicto? Será mesmo que o que ele mais quer ser é equilibrado??
Existe realmente equilíbrio na "vida comum"? Será, realmente interessante, a vida que as outras pessoas parecem almejar e viver?
Dificilmente.
Existe nas dependências um princípio de verdade que é o facto de estas responderem 100% das vezes a uma necessidade de sobrevivência perante perspectivas que não encontram eco no interior do adicto, de uma tremenda falta de reflexo entre o dentro e o fora, e um alicerce rombo, onde a "vida comum" criou mais mossa do que estrutura e força, quando a personalidade estava ainda em formação.
É difícil compreender fora da cabeça do adicto que a dita "vida normal" tem muito de alucinada e absurda. O facto de nos termos habituado a ela não significa que ela seja razoável e que seja aceitável tanto do que sucede de absurdo, doloroso e desnecessariamente maçerador aquilo que se vive. A "vida normal" das ditas pessoas "normais" é muitas vezes um percurso de adaptação ao inaceitável, que não é necessariamente grande demonstração de inteligência.
Perante o inaceitável talvez fosse mais lógico não aceitar. E no entanto, as circunstâncias da vida, os percursos, uma educação que nos prepara para a adaptação e não para a transformação, cria aceitantes, cooperantes com o inaceitável e para o dependente isso parece o inferno.
Além da terrível pergunta:
Serei eu capaz de viver uma vida "normal"?
...

É um obstácuo existencial, que abre uma proposta de análise social a todos nós, de um questionar que não devia ser encerrado com o carimbo "Bem vindo ao mundo dos crescidos! Cresce!" Porque se é certo que existe sempre uma forma de imaturidade no adicto: emocional, vivencial, espiritual... verdade é também que num ponto o adicto tem razão em dizer que há também muito a mudar no absurdo colectivo em que a banalidade aceita viver, sem questionar.
Ainda assim, que fique registado:
O inferno é antes da recuperação, a recuperação é um parto doloroso e, sim, existe vida depois da recuperação. Ninguém melhor do que quem fez esse caminho para o afirmar sem margem para dúvidas, para dizer que é possível, e como nada pode ser pior do que nadar num mar de medo, seja ele aplaudido ou estigmatizado, seja ele feito de pressões externas ou internas... Viver sem dependências é sempre, inequivocamente, muito melhor.


Obstáculos à recuperação 6

Substituição.
Antes bêbedo do que drogado.
Antes jogo do que droga.
Antes comer do que beber.
Antes trabalhar do que jogar.
Não compreender em profundidade o que significa ser adicto é algo expresso nestas expressões.
A adicção é uma força viva que pode saltar de consumo em consumo sem desaparecer ou tranformar doença em saúde.
A adicção é um desequilíbrio existêncial, profundo, quase celular, ancestral, enraizado no próprio significado da vida do adicto.
É totalmente indiferente se é esta ou aquela depêndência.
Aliás muitos vão saltando desta para aquela, daquela para outra, quando não várias em simultâneo.
Adictos aos jogos de computador podem ser em simultâneo predadores sexuais.
Trabalhadores compulsivos podem ser ao mesmo tempo alcóolicos.
É dentro que o desequilíbrio está e não à superfície visível.
Esta confusão é um obstáculo à recuperação porque cria um jogo de espelhos e de esperanças vãs.
O co-dependente parece mais saudável e controlado do que o adicto.
Quantas vezes o adicto em recuperação salta para a co-dependência, nomeadamente fazendo formação nas áreas de prestação de cuidados. Muitas vezes o adicto precisa de ir em simultâneo a reuniões de co-dependentes.
O buraco negro tem muitos nomes, muitas côres, significados e expressões. Mas nunca deixa de ser o que é: um buraco negro sem fim sugando o adicto de dentro para fora.
A recuperação verdadeira é um exercício de humildade e de poder resgatado minuto a minuto. Minuto a minuto.
O resgate desse poder pode ser ofuscado pela substituição de uma adicção por outra.
Minuto a minuto.
Mais 24 horas.

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