Um olho na rua e outro em casa
Perfil do dependente químico indica envolvimento da família no consumo de drogas
Quando o assunto é dependência química, a grande preocupação geralmente está nas ruas. Mas o perfil de usuários que procuraram atendimento no Conselho Estadual Antidrogas do Rio de Janeiro (Cead), órgão vinculado à Secretaria de Estado de Justiça e Direitos do Cidadão que oferece tratamento gratuito completo ao dependente, revela que o problema pode estar mais perto do que se imagina: na maioria dos casos, existe uma história familiar de uso de drogas.
O estudo, realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) a pedido do Cead, mostra também que o álcool é a primeira droga a ser usada e a preferida dos dependentes, o que alerta para o perigo de seu consumo. A avaliação das características dos usuários, pioneira no estado do Rio de Janeiro, pode reorientar o tratamento e as estratégias de prevenção, garantindo sua maior eficácia.
Para traçar o perfil epidemiológico dos dependentes, foram analisadas informações de prontuários de pacientes atendidos pelo Cead entre janeiro de 1999 e julho de 2004. Nesse período, o Conselho recebeu 13.352 pessoas de todo o estado, a grande maioria homens. A avaliação dos usuários foi feita com base em uma amostra de 3.672 prontuários, sendo 1.701 de mulheres (todas as atendidas no período) e 1.971 de homens (20% dos que procuraram o serviço).
O estudo revelou um fato surpreendente: 83% das mulheres e 73% dos homens disseram já existir em sua família pelo menos um consumidor de algum tipo de droga. O pai é citado em 47% das entrevistas, seguido por irmãos (38%), tios (18%) e mãe (15%). O uso pelo cônjuge aparece em 9% dos casos e é mais freqüente quando o paciente é mulher – 17,4% das que apontaram histórico familiar de uso mencionaram o cônjuge, enquanto entre os homens esse número foi de apenas 1,5%. “Esse resultado foi uma surpresa, pois pensávamos que a maior influência vinha de amigos ou companheiros”, diz o presidente do Cead, Murilo Asfora.
Segundo a coordenadora da pesquisa, a psiquiatra Ana Cristina Saad, do Programa de Estudo e Assistência ao Uso Indevido de Drogas do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, esses dados não indicam que os pais dêem a droga aos filhos, mas que o acesso é facilitado devido à maior circulação da droga em casa. “A presença da bebida e do cigarro já é suficiente para gerar um discurso contraditório, que pode ser interpretado como uma permissão ao consumo, caso não haja uma conversa franca entre pais e filhos”, acrescenta.
A epidemiologista Márcia Carvalho, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, que ajudou na análise das informações, ressalta que não se pode dizer que o uso de drogas pela família seja a causa da dependência. “As informações do prontuário mostram que há uma associação entre esses fatos, mas seria preciso entrevistar pessoalmente os pacientes para chegar a conclusões mais específicas.”
Carvalho diz que a pesquisa indica que a dependência é uma doença familiar, que não atinge apenas quem procura ajuda. “Por isso, qualquer iniciativa de tratamento ou prevenção deve incluir toda a família”, enfatiza. Saad também destaca a necessidade de aumentar a preocupação com o ambiente familiar, lembrando que 80% dos pacientes atendidos ainda moravam com parentes. E completa: “A família não está envolvida apenas no surgimento do problema, mas também na procura pelo tratamento.”
Inimigo n o 1
O perfil do dependente químico atendido no Cead mostrou ainda que o álcool é a droga preferida e a primeira a ser consumida, às vezes simultaneamente com outras drogas. Cerca de 62% dos usuários iniciaram o consumo de drogas através do álcool, 32% começaram com maconha, 27% com cocaína e 15% com tabaco. O álcool é mais citado por pessoas de faixa etária maior; enquanto entre os menores de 21 anos a principal droga inicial é a maconha. Essa diferença, segundo a coordenadora da pesquisa, pode ser explicada pelo fato de os jovens em geral não considerarem o álcool uma droga.
O álcool também ganha na preferência dos dependentes: foi apontado em 52% dos casos. Em seguida, aparece a cocaína, com 46%. A maconha ficou em terceiro (24%) e o tabaco em quarto (9,5%). O ecstasy foi citado em menos de 1% dos casos e a heroína e o crack não foram mencionados. “O álcool hoje é muito incentivado pela mídia e pela cultura e é negligenciado nas estratégias de prevenção”, pondera Saad.
Outro dado preocupante revelado pelo estudo refere-se à idade de início do consumo: apesar da maioria (63%) ter começado a usar drogas entre 10 e 17 anos – o que já era esperado, segundo Saad –, 9% tinham menos de 10 anos. “Foi um engano achar que a precocidade, atualmente generalizada, não fosse chegar ao universo das drogas”, comenta a psiquiatra. Ela ressalta que a iniciação precoce tem um forte impacto físico e biológico, o que facilita a dependência e o aparecimento dos efeitos negativos da droga no organismo.
Segundo a pesquisa, as pessoas atendidas no Cead em geral são maiores de 24 anos, têm baixa renda e não completaram o ensino fundamental. Além disso, mais da metade já tinha procurado tratamento anteriormente e muitos passaram inclusive por internações. A epidemiologista Márcia Carvalho explica que o perfil socioeconômico do paciente pode estar relacionado ao fato de o Cead ser um órgão público. Com relação à escolaridade, ela chama a atenção para um fato preocupante: “70% dos usuários entre 11 e 21 anos, que deveriam estar freqüentando a escola, não estudam.”
O relatório final da análise foi apresentado oficialmente ao governo estadual durante um simpósio no início de julho. Segundo o presidente do Cead, os resultados permitirão identificar falhas no serviço e orientar o tratamento, além de ajudar outras instituições fluminenses que lidam com usuários de drogas. “Antes, trabalhávamos no escuro, sem uma base científica, pois não havia no Rio de Janeiro um estudo sobre o dependente químico”, conta. Asfora adianta que a ampliação do atendimento familiar será uma das iniciativas para melhorar o serviço no Cead. O Conselho agora pretende realizar uma pesquisa mais detalhada e verificar a situação atual dos usuários.
O perfil traçado poderá direcionar não apenas o tratamento do dependente, como também as estratégias de prevenção adotadas pelo estado. “Esse pode ser o início de um estudo nacional para orientar as políticas públicas antidrogas”, sugere o presidente do Cead. Segundo as pesquisadoras, a principal iniciativa deve ser o investimento em propaganda preventiva contra o consumo de álcool. “É preciso fazer com que a sociedade enxergue o álcool como uma droga”, conclui Saad.
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