sábado, 1 de junho de 2013


Drogas, ilusão e realismo


São Paulo (SP) - Em recente entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o psiquiatra argentino Eduardo Kalina, respeitado especialista no tratamento de dependentes químicos, fez um alerta: o cérebro nunca esquece a sensação provocada pela droga. Para um dependente químico, a cura exige a abstinência total das drogas, inclusive álcool e cigarro. Kalina já tratou de pacientes famosos, como a atriz Vera Fischer e o ex-jogador Diego Maradona. Embora sem fazer referência aos seus pacientes, deixou claro o risco de recaída que ronda tentativas de recuperação que não trazem a marca da radicalidade.

"Cura significa deixar de tomar drogas de todo tipo, álcool e tabaco inclusive, e aceitar que o corpo nunca vai esquecer o que aprendeu. Se você foi fumante, alcoólatra ou toxicômano, o cérebro não esquece. Por isso, a cervejinha é fatal, porque abre a memória biológica. A pessoa lembra e acorda tudo o que tratamos de limpar. Há cura se você aceita seus limites", sublinha o psiquiatra.

O comentário do especialista bate de frente com o engano que está na raiz de certas políticas de redução de danos. Setores do governo, talvez influenciados pelos lobbies em favor da liberação de algumas drogas (leia-se maconha), estão tentando conciliar realidades antitéticas. De fato, não obstante o discurso em defesa da prevenção e recuperação de adictos, há uma clara diminuição da importância que, com razão, se atribuía à terapia da abstinência. Multiplicam-se, ao contrário, declarações otimistas a respeito das estratégias de redução de danos. O fundamental, imaginam os defensores da nova política, não é a interrupção imediata do uso de drogas pelo dependente, mas que ele tenha uma melhora em suas condições gerais. Na verdade, a discussão sobre as drogas tem sido marcada por um clima emocional e um ambiente de campanha. Sobra engajamento, mas falta informação.

Deu-se à recente decisão do Canadá de legalizar o uso da maconha para fins terapêuticos, medida sem dúvida polêmica, a falsa idéia de que se tratou de uma legitimação irrestrita do uso daquela droga. Não foi assim, apesar de algumas manchetes terem transmitido essa sensação.

A opção pela redução de danos pode ser justificada em casos contados, mas não deve ser guindada à condição de política antidrogas. Afinal, todos sabem que, assim como não existe meia gravidez, também não há meia dependência.

Embora alguns usuários possam imaginar que sejam capazes de controlar o consumo, cedo ou tarde descobrem que, de fato, já não são senhores de si próprios. Não existe consumidor ocasional. Existe, sim, usuário iniciante, mas que, depois, tende a se transformar em dependente crônico. Afinal, a compulsão é a marca do dependente. Um cigarro de maconha pode ser o começo de um itinerário rumo ao inferno das drogas. Transcrevo, caro leitor, o depoimento de um dependente em recuperação que conseguiu sair desse lugar de trevas. Ele não usa jargões politicamente corretos. É de uma sinceridade cortante, própria de quem experimentou a asfixia do fundo do poço. Suas declarações não têm o tom maneiro de certos textos de gabinete. Mas transmitem a força persuasiva do sofrimento vivido. "Comecei na maconha aos 14 anos. Depois, passei para as drogas injetáveis. Fiz inúmeras tentativas de ficar fumando unzinho, mas nunca consegui. A família me levava ao médico, que receitava calmantes e antidepressivos. Os remédios me estimulavam a consumir cocaína. Só a abstinência total está me mantendo vivo." A. B., 37 anos, Taquaritinga, interior de São Paulo, três anos de abstinência.

As pesquisas do psiquiatra Eduardo Kalina confirmam a dura experiência dos dependentes. Indagado sobre o que pensava a respeito da descriminação da maconha, bandeira freqüentemente agitada no espaço da mídia, o especialista foi enfático: "Sou contra. As pessoas que defendem isso não se preocupam com a saúde pública. Há estudos sobre o poder carcinogenético (causador de câncer) da maconha, que é quatro vezes superior ao do tabaco", concluiu.

O general Alberto Cardoso, responsável pela Secretaria Nacional Antidrogas, tem demonstrado desejo de acertar. Sua assessoria, no entanto, não parece adotar um discurso homogêneo. Na verdade, algumas tomadas de posição têm pendido excessivamente para o lado dos que vendem a ilusão da redução de danos. Impõe-se que os responsáveis pelo combate às drogas abandonem o conforto de Brasília e entrem em contato com o verdadeiro drama dos adictos.

Eu fiz isso. Não considero correto escrever e opinar a respeito de uma realidade distante: conversei com especialistas, ouvi relatos de dependentes químicos, visitei uma comunidade terapêutica que apresenta elevados índices de recuperação, desenvolvi, enfim, um trabalho de reportagem. O autismo é sempre antijornalístico e burocrático. Infelizmente, tal deformação tem tomado conta de inúmeros programas governamentais. Espero que o governo caia na realidade. A dependência química não admite ilusões. Reclama, sim, seriedade e realismo.

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